terça-feira, 22 de maio de 2018

O Trunfo do Diabo



Eu sou invisível a olho vestido. Todos podem me ver, mas não o fazem. Quando se está em multidão, não se está em lugar nenhum. E é assim que eu atuo, dentro da grande multidão chamada humanidade.

Mas não pensem que eu fico me escondendo, como uma barata que vai para debaixo da geladeira enquanto alguém a persegue com SBP em mãos. Não. Em verdade, estou sempre às vistas, embora seja discreto e silencioso. Apesar desse aspecto gatuno, sei quebrar o silêncio com palavras suaves, que soam como canção aos ouvidos desesperados. Você sabe quem eu sou? Tenho certeza que sim. Eu sou o Diabo.

Tenho muitos nomes artísticos: Lúcifer, Satanás, Belzebu. Mas se nem só de fama vive o homem, quanto mais o Diabo. É por conta disso que gosto de produzir minha arte sob pseudônimos. Ah, são tantos. Cléber, Marina, Paulo, Bianca. Eu poderia passar a eternidade falando dos meus nomes - e não seria hipérbole. A nomenclatura adequada provoca o efeito adequado, por isso acho tão importantes as alcunhas.

Apesar do meu fascínio – fundamentado no peso que as palavras ganham quando faladas pelo nome certo – os humanos tem um temor estranho em relação aos meus nomes artísticos. Explico. Parece que as pessoas simplesmente não gostam de dizer em voz alta as palavras Lúcifer, Satanás e Belzebu – o que eu acho hilário, porque é como fui apresentado pela Bíblia, e era como me chamavam nas quebradas naquela época.

Por conta desse medo estranho, me sinto quase como Lord Voldermort – chamado de Você-sabe-quem pela bruxarada de Harry Potter. Nesse chama-e-não-chama, a criatividade da humanidade veio à tona. Foi aí que me deram novos apelidos. Capeta, Capiroto, Sete-Peles, Tinhoso (esse eu acho particularmente fofo), Rabo-de-seta, Coisa-ruim (esse eu acho ofensivo), e por aí vai. Achei sensacional. Tenho mais nomes do que aipim ao redor do Brasil. Fantástico. Fique à vontade para escolher o seu favorito.

Certo, eu tenho muitos nomes. Mas como é a minha cara? Essa questão é tão interessante quanto Mister M revelando seus segredos. Provavelmente, quando você pensa em mim, pensa em uma criatura vermelha, com chifres, barbicha brega, asas de morcego, pés de bode e tridente. Em alguma medida, eu seria algo entre um Pokémon e um cafetão. Mas que blasfêmia. A verdade é que eu sou um ser de excepcional beleza. Não sou nem homem, nem mulher – o que talvez seja difícil de assimilar na sua cabeça limitada de humano. Porém, ao final das contas, sou uma criatura de extrema beleza. Sendo assim, não me compare a uma carta de Yu-Gi-Oh.

Essa imagem distorcida que vocês têm da minha aparência é fruto da maléfica criatividade humana. Ressalto: não tive nada a ver com isso. O que aconteceu foi o seguinte. Certos humanos montaram o meu look com base em características de povos que eles não simpatizavam. Depois eu que sou cruel. Por conta disso, aquela imagem bisonha que narrei acima herdou a barbicha dos árabes mulçumanos – durante as Cruzadas. Já as asas vêm do livro A Divina Comédia (escrito por Dante). O tridente, por sua vez, é referência ao Deus grego Poseidon. Por fim, os pés de bode são referência ao Deus grego Pã. Em resumo, fizeram de mim um verdadeiro Frankstein.

Em meio a tanta loucura, a minha beleza permanece intacta. Mas não pense que sou apenas um rostinho bonito. Para exercer bem a minha Arte, aprendi desde cedo a ser como um camaleão. Mudo minha aparência assim como Fátima Bernardes muda de penteado. Logo, posso ser feio ou bonito conforme me convier. Adão e Eva que os diga. Até hoje admiro a sacada da serpente. Em meio a tudo isso, convido-os a refletir. O que atrai mais, o feio ou belo? Talvez a figura do Diabo Caprino não faça tanto sentido mais... A humanidade e seus devaneios.

Já falei do meu nome e da minha aparência, mas onde eu exerço minha Arte, afinal? Talvez você tenha pensado no Inferno. É senso comum o Inferno ser um lugar desagradável. Embora eu não seja muito favorável à ideia de senso comum, devo admitir que lá é sim desagradável. Porém, não tem nada de efeitos pirotécnicos ou lagos de fogo. Ao invés disso, pense no Inferno como um órgão público lotado, onde você pega senha às 4 horas da manhã e nunca é atendido. Tem basicamente duas funções para mim: servir de escritório, afinal organização é fundamental para a potencialização da criatividade; e algo que eu não vou dizer agora, pois tiraria a graça quando você morrer. Dica: tem a ver com as senhas que falei acima.

Sendo sincero, o Inferno é bem entediante. O que eu gosto mesmo é do trabalho de campo. Por conta disso, estou sempre com meus pés (que não são de bode) na Terra. É neste planeta sensacional que minha criatividade aflora e minha arte brota como muriçoca após trovoada. É no Planeta Água (como diria Guilherme Arantes) que eu ganho a vida. Ou melhor, a eternidade. Mas, afinal de contas, o que é que eu faço?

Você deve ter percebido que, até aqui, eu venho me referindo a minha atividade como “Arte”. E, de fato, é arte. Realizo-a com tamanha maestria que merece ser admirada como o mais belo dos quadros, ou a mais sublime das canções. Eu sou artista e me regozijo no meu labor. Esse labor, por sua vez, engloba duas atividades diferentes, mas que compõem a Arte como um todo. Nesse contexto, me considero: a) Negociante; e b) Agricultor.

Dizem que a propaganda é a alma do negócio. No meu caso, o negócio é a própria alma mesmo. Embora não seja a minha atividade favorita, me garante bom percentual de satisfação. Basicamente, as pessoas vêm a mim com algum desejo. Alguns querem ter muito dinheiro, outros querem ser muito famosos. Independentemente do pedido, geralmente se trata de algo egoísta. Não é muito divertido, afinal basta eu conceder o pedido do cidadão/ cidadã – o que geralmente significa dar um pequeno empurrão em algo que a pessoa poderia conseguir por conta própria – e a alma dessa criaturinha ficará esperando sua senha ser chamada durante todo o sempre no pregão do Inferno. Não exige muito da minha capacidade, mas não é algo que pode ser desperdiçado. Ainda, apesar de tantos anos no ramo, me surpreendo com a burrice dos meus clientes. Talvez eles devessem olhar no dicionário o significado de “eternidade” antes de entrar em um trato-feito envolvendo as próprias almas.

Entretanto, a parte da Arte que me enche de prazer é aquela envolvendo ser Agricultor. Eu não crio o caos com minhas próprias mãos. Minha construção é desconstruir. Descontruir vidas, descontruir felicidade. Inferno, Céu e pecado são conceitos muitos abstratos e distantes para as mentes humanas. Mas o sofrimento é real. É físico, mas também psicológico. Corpo e mente são meu roçado.

Nesse contexto, considero-me Agricultor, pois plantar a semente da discórdia, da confusão e do sofrimento é o que eu preciso para consumar a Arte em todas as suas vertentes. Ver o circo pegar fogo é minha maior satisfação. Por conta disso, minha agricultura tem se mostrado muito próspera.

Se Deus está no coração de cada um, eu estou na mente. A humanidade tende a pensar em mim como o grande torturador. Carniceiro mor até. Acho isso imensa deselegância.
Minha Arte consiste em sussurrar aos ouvidos do menino que mais uma dose não vai fazer mal. Questionar a mulher o motivo de sua amiga ter um carro tão caro e ela não. Minha Arte consiste em confidenciar para o homem que a religião dele tem o dever moral de purificar o mundo e suas imundices. Meus caros, minha Arte consiste em perguntar para o namorado: “Sua namorada não te responde há 50 minutos... estranho, não é?”. Minha Arte, meus queridos, é de fora para dentro.

A desculpa mais esfarrapada é atribuir os males do mundo ao Diabo. Pobre de mim. Eu não coloco a arma na mão de ninguém. Eu não preparo a seringa. Eu não conto para o seu chefe que Carolina falou mal dele. Eu não acendo as tochas e desembainho as espadas para livrar o mundo por Maomé – ou de Maomé. Não. Eu não espanco homossexuais ou os amaldiçoo por serem criaturas desprezíveis – lembre-se, sequer tenho sexo! Eu não coloco negros em navios nem olho seus dentes. Quem faz tudo isso, meus queridos humanos, são vocês.

O livre-arbítrio é uma das coisas mais lindas da Criação. Meu Pai acertou em cheio. E é o livre-arbítrio a principal ferramenta que utilizo para fazer Arte. Eu não faço imposições. Faço perguntas. “Seu chefe prefere o trabalho de Carolina ao seu? Será que ele pensaria assim se soubesse o que ela falou semana passada?”. “Gabriela merece viver após trair o amor que você lhe deu?”. “Não existem tantas pessoas que se drogam só por curtição e depois param?”. A resposta para essas perguntas são vocês que dão.

Tudo o que eu quero é o caos. Provocar, plantar a semente. Meu prazer é ver a semente brotar e se transformar em uma árvore de tronco sólido e intransponível. Ver o livre-arbítrio acabar com a liberdade. Por isso, lembre-se: o Diabo não está ao lado. O Diabo está dentro de sua mente. Sabe aquela voz estranha que causa angústia e te faz querer chorar? Sou eu perguntando. As perguntas não têm fim. Mas que fim você quer ter?

Nenhum comentário:

Postar um comentário