sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Transatlântico da Mediocridade


Faça suas malas, saque sua passagem e se prepare para embarcar. Não se preocupe, a viagem será tranquila. Muito tranquila. Irritantemente tranquila. Você conhecerá o lado mais irrelevante da mente humana. Aquela zona entre a racionalidade e a paixão. Entre o cômico e o bizarro. Entre a mentira e a ignorância. Acomode-se, meu caro, zarparemos em instantes. Não se esqueça do colete salva-vidas, seu cérebro agradecerá.  Mas deixemos de delongas, sem mais intervalos comerciais. Aproxime-se e embarque no magnífico, no extraordinário, no abominável e odiado: Transatlântico da Mediocridade.

Todos os domingos – dia da semana de popularidade questionável – nos deparamos, em algum momento do dia, com aquela situação em que tudo que poderíamos fazer desaparece. Sejam os importantes compromissos do trabalho, sejam os prazerosos passatempos.

De repente, você é a pessoa mais livre do mundo - os operadores de telemarketing morreriam de inveja. E aí você começa a vagar, como um zumbi que comeu todos os cérebros de uma ilha. Todos exceto o próprio. É aí que você tem a visão. Lá longe, no horizonte, mas se aproximando, o agregado do submundo da cultura surge. Navegando pelas águas calmas e sem ventos, o temível Transatlântico da Mediocridade dá o ar de sua desgraça. Você não tem escolha e embarca.

Sem sair do seu sofá, você começa a imergir no vasto conteúdo pouco aderível do transatlântico. Em um contexto onde o tempo é totalmente desconsiderável, você anda em círculos em um arquipélago de igrejas – com o número da conta na tela -, produtos extremamente necessários, e programas de duração infinita. Entre as ilhas, uma ou outra notícia seríssima e um jogo de futebol.

A bordo do show de horrores navegante, você avista a primeira parada do transatlântico, a Ilha do Missionário. O barco atraca, você desembarca e tudo começa com uma pequena contribuição financeira para entrar no local. Tudo bem, você paga para ver. Um grande templo ocupa boa parte da área.

É grandioso e luxuoso. Um verdadeiro palácio celestial. Lá dentro, milhares de pessoas se exaltam regidas por um astuto pastor. Ele esbraveja e se movimenta de maneira elétrica. O som é potente, a voz do pastor também. Ele começa a descrever milagres, depois começa a distribuir milagres. Pessoas voltam a andar, outras a enxergar. Tudo está acontecendo. Na verdade é tudo meio que um milagre, principalmente você parar ali, mas o difícil agora é sair.

O pastor cessa um pouco a enxurrada milagrosa e começa a falar da importância de selecionar conteúdo adequado, sem interferência do mundo (irônico!). Logo depois, apresenta a milagrosa TV à cabo abençoada. Um fiel telespectador relata sua mudança de vida. Ele bebia, fumava, batia na mulher. Depois da TV, tudo mudou. Os filmes devem ser realmente muito bons.

O pastor continua sua pregação. Você não sabe por que, mas ainda está dentro do templo, fixado nas palavras do pastor. Leitura do salmo 126, contribuição de R$ 126,00. Relógio incessante da oração, um dinheirinho para a bateria. E assim vai. Você está quase zerado, o pastor arremata com mais um ou dois milagres e então você ouve o apito e acorda. Hora de partir. O transatlântico continua a navegar. Você está muito feliz, quem tem tanto dinheiro para igrejas? Então você avista uma ilha, é a Ilha Polishop. Sua felicidade termina, seu dinheiro também.

 A ilha é bastante peculiar, a começar pelas suas cores. É uma coisa estranha, todo lugar da ilha é composto por uma parte colorida e outra parte em preto e branco.

Você começa a caminhar. De cara você vê duas mulheres varrendo o chão. Uma, em preto e branco, parece sofrer enquanto varre com uma vassoura comum. Ela faz cara de dor, enxuga o suor da testa e parece irritada. Suas roupas são velhas e o chão, por mais que ela varra, nunca fica limpo.

Ao seu lado – num cenário colorido -, a outra mulher parece ter alcançado o nirvana. Trajando um belo vestido floral, com cabelos soltos ao vento e o sol destacando o brilho do seu rosto, ela varre. Enquanto varre, rodopia. Mal consegue conter o sorriso no rosto. “Por que não comecei a varrer antes?” – pensava. O chão já estava mais do que limpo, mas o que importava? Ela e sua vassoura – que não era muito diferente da sem-cores, salvo por um ou outro botão – formavam o par perfeito.

Você continua andando, seus olhos já irritados com aquele contraste cor/sem-cor. O cenário é sempre o mesmo. Dois homens lavando seus respectivos carros, um em preto e branco, cansado, triste e sujo, lutando enlouquecidamente com uma maneira murcha e de jato fraco. Ele tenta tirar a sujeira do seu velho carro, mas parece que a tarefa é impossível.

O outro é o mais feliz dos homens. Jatos potentes da mais cristalina das águas jorram implacáveis da sua super-mangueira-flexível-de-longo-alcance-a-prova-de-balas sobre o seu carro zero, desmaterializando numa explosão de higiene a sujeira que ali havia.

E são vassouras, mangueiras, faqueiros e panelas. Dois mundos em um só: o inferno preto e branco e o paraíso colorido. O transatlântico apita, hora de partir de novo, o destino é a Ilha do Auditório.

A essa altura da viagem no Transatlântico da Mediocridade, você já está num considerável nível de tédio. O balançar preguiçoso a bordo só aumenta sua irritação. Mas ainda há espaço para mais pólvora antes da explosão. A próxima parada é a Ilha do Auditório, e mesmo antes de desembarcar, você já começa a ouvir o barulho dos aplausos. “Não vai dar certo”, você pensa, mas desembarca.

Ao pisar na ilha, você observa o ambiente. É um lugar pequeno, mas que parece bem maior visto de longe. Tudo é cercado por assentos, a ilha é realmente um auditório. Os lugares estão preenchidos completamente, a maioria deles por mulheres. Algumas pessoas de preto parecem organizar as coisas por ali.

Você fica confuso, mas dá o primeiro passo. Imediatamente uma música toca repentinamente. O público acompanha o ritmo nas palmas, dançarinas começam a fazer alguma espécie de dança tribal antiga, que aparenta não ter o mínimo sentido. É então que um homem irreverente e sorridente chega. Ele é confiante e parece ser amado pelo público. O pessoal de preto rege a situação.

Você não entende mais nada. Só pode ser um evento especial. O homem então vem até você. “Olha só quem tá aqui hoje! E aí, bicho!”. Aplausos. Você olha desconfiado para o homem e responde um tímido “oi”. Aplausos. De repente você é o centro das atenções. Um vídeo mostrando você no trabalho, em casa e no shopping passa. Aplausos. “Que história, bicho! Conta aí agora, o que mais você faz?”, pergunta o homem. Você ameaça uma resposta, mas é interrompido por mais uma onda de aplausos. Como gosta de aplaudir, esse pessoal. É aí que o homem começa a chorar. Ele diz que sua história é emocionante e pede uma salva de palmas. Você tenta sair dali, mas o homem não deixa.

O foco logo muda. O homem logo se esquece da sua emocionante história e chama ao palco cinco mulheres. As mulheres vão entrando uma a uma no palco ao som de uma música do momento. As dançarinas acompanham através de uma nova coreografia. Você tem a sensação de ser a mesma coreografia do início, mas o seu cérebro já está bastante danificado para distinguir (eu avisei sobre o salva-vidas!). Aplausos.

O homem, então, vai apresentando as mulheres. Todas têm nomes de gosto duvidoso, cara de ferocidade carente e querem ser sua namorada. Você nunca viu nenhuma delas na vida. Enquanto você decide quem será o amor de sua vida, mais aplausos, danças bizarras e uma matéria interessantíssima sobre os namoros frustrados de ex-BBB com irmão de MC não das quantas. Então, entre aplausos e coisas sem sentido você ouve o apito. O transatlântico vai zarpar, e você também. Aplausos.

De volta a bordo, você sente estar nos limites dos próprios limites, Alguns passageiros parecem tão angustiados quanto você, outros parecem ter decidido se entregar e simplesmente ficam a vagar com os olhos apáticos, vazios a cada parada. Você percebe que apenas o Capitão parece estar normal. Faz algum sentido, ele apenas guia o transatlântico. Conhece as Ilhas, mas nunca desfruta do seu conteúdo.

Finalmente o barco volta para casa. Você não pode dizer que está cansado, afinal, não fez tanta coisa assim. Mas dormir e passar logo esse domingo é o que você mais deseja. Na segunda-feira, tudo estará normal, não há com o que se preocupar. Pelo menos não até o próximo domingo, quando nas mesmas horas, nos mesmos canais, o Transatlântico da Mediocridade virá te buscar.


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