Eu
sou invisível a olho vestido. Todos podem me ver, mas não o fazem. Quando se
está em multidão, não se está em lugar nenhum. E é assim que eu atuo, dentro da
grande multidão chamada humanidade.
Mas
não pensem que eu fico me escondendo, como uma barata que vai para debaixo da
geladeira enquanto alguém a persegue com SBP em mãos. Não. Em verdade, estou
sempre às vistas, embora seja discreto e silencioso. Apesar desse aspecto
gatuno, sei quebrar o silêncio com palavras suaves, que soam como canção aos
ouvidos desesperados. Você sabe quem eu sou? Tenho certeza que sim. Eu sou o
Diabo.
Tenho muitos nomes artísticos:
Lúcifer, Satanás, Belzebu. Mas se nem só de fama vive o homem, quanto mais o
Diabo. É por conta disso que gosto de produzir minha arte sob pseudônimos. Ah,
são tantos. Cléber, Marina, Paulo, Bianca. Eu poderia passar a eternidade
falando dos meus nomes - e não seria hipérbole. A nomenclatura adequada provoca
o efeito adequado, por isso acho tão importantes as alcunhas.
Apesar
do meu fascínio – fundamentado no peso que as palavras ganham quando faladas
pelo nome certo – os humanos tem um temor estranho em relação aos meus nomes
artísticos. Explico. Parece que as pessoas simplesmente não gostam de dizer em
voz alta as palavras Lúcifer, Satanás e Belzebu – o que eu acho hilário, porque
é como fui apresentado pela Bíblia, e era como me chamavam nas quebradas
naquela época.
Por
conta desse medo estranho, me sinto quase como Lord Voldermort – chamado de
Você-sabe-quem pela bruxarada de Harry Potter. Nesse chama-e-não-chama, a
criatividade da humanidade veio à tona. Foi aí que me deram novos apelidos.
Capeta, Capiroto, Sete-Peles, Tinhoso (esse eu acho particularmente fofo), Rabo-de-seta,
Coisa-ruim (esse eu acho ofensivo), e por aí vai. Achei sensacional. Tenho mais
nomes do que aipim ao redor do Brasil. Fantástico. Fique à vontade para
escolher o seu favorito.
Certo,
eu tenho muitos nomes. Mas como é a minha cara? Essa questão é tão interessante
quanto Mister M revelando seus segredos. Provavelmente, quando você pensa em
mim, pensa em uma criatura vermelha, com chifres, barbicha brega, asas de
morcego, pés de bode e tridente. Em alguma medida, eu seria algo entre um
Pokémon e um cafetão. Mas que blasfêmia. A verdade é que eu sou um ser de
excepcional beleza. Não sou nem homem, nem mulher – o que talvez seja difícil
de assimilar na sua cabeça limitada de humano. Porém, ao final das contas, sou
uma criatura de extrema beleza. Sendo assim, não me compare a uma carta de
Yu-Gi-Oh.
Essa
imagem distorcida que vocês têm da minha aparência é fruto da maléfica
criatividade humana. Ressalto: não tive nada a ver com isso. O que aconteceu
foi o seguinte. Certos humanos montaram o meu look com base em características
de povos que eles não simpatizavam. Depois eu que sou cruel. Por conta disso,
aquela imagem bisonha que narrei acima herdou a barbicha dos árabes mulçumanos
– durante as Cruzadas. Já as asas vêm do livro A Divina Comédia (escrito por
Dante). O tridente, por sua vez, é referência ao Deus grego Poseidon. Por fim,
os pés de bode são referência ao Deus grego Pã. Em resumo, fizeram de mim um
verdadeiro Frankstein.
Em
meio a tanta loucura, a minha beleza permanece intacta. Mas não pense que sou
apenas um rostinho bonito. Para exercer bem a minha Arte, aprendi desde cedo a
ser como um camaleão. Mudo minha aparência assim como Fátima Bernardes muda de
penteado. Logo, posso ser feio ou bonito conforme me convier. Adão e Eva que os
diga. Até hoje admiro a sacada da serpente. Em meio a tudo isso, convido-os a
refletir. O que atrai mais, o feio ou belo? Talvez a figura do Diabo Caprino
não faça tanto sentido mais... A humanidade e seus devaneios.
Já
falei do meu nome e da minha aparência, mas onde eu exerço minha Arte, afinal?
Talvez você tenha pensado no Inferno. É senso comum o Inferno ser um lugar
desagradável. Embora eu não seja muito favorável à ideia de senso comum, devo
admitir que lá é sim desagradável. Porém, não tem nada de efeitos pirotécnicos
ou lagos de fogo. Ao invés disso, pense no Inferno como um órgão público
lotado, onde você pega senha às 4 horas da manhã e nunca é atendido. Tem
basicamente duas funções para mim: servir de escritório, afinal organização é
fundamental para a potencialização da criatividade; e algo que eu não vou dizer
agora, pois tiraria a graça quando você morrer. Dica: tem a ver com as senhas
que falei acima.
Sendo
sincero, o Inferno é bem entediante. O que eu gosto mesmo é do trabalho de
campo. Por conta disso, estou sempre com meus pés (que não são de bode) na
Terra. É neste planeta sensacional que minha criatividade aflora e minha arte
brota como muriçoca após trovoada. É no Planeta Água (como diria Guilherme
Arantes) que eu ganho a vida. Ou melhor, a eternidade. Mas, afinal de contas, o
que é que eu faço?
Você
deve ter percebido que, até aqui, eu venho me referindo a minha atividade como
“Arte”. E, de fato, é arte. Realizo-a com tamanha maestria que merece ser
admirada como o mais belo dos quadros, ou a mais sublime das canções. Eu sou
artista e me regozijo no meu labor. Esse labor, por sua vez, engloba duas
atividades diferentes, mas que compõem a Arte como um todo. Nesse contexto, me
considero: a) Negociante; e b) Agricultor.
Dizem
que a propaganda é a alma do negócio. No meu caso, o negócio é a própria alma
mesmo. Embora não seja a minha atividade favorita, me garante bom percentual de
satisfação. Basicamente, as pessoas vêm a mim com algum desejo. Alguns querem
ter muito dinheiro, outros querem ser muito famosos. Independentemente do
pedido, geralmente se trata de algo egoísta. Não é muito divertido, afinal
basta eu conceder o pedido do cidadão/ cidadã – o que geralmente significa dar
um pequeno empurrão em algo que a pessoa poderia conseguir por conta própria –
e a alma dessa criaturinha ficará esperando sua senha ser chamada durante todo
o sempre no pregão do Inferno. Não exige muito da minha capacidade, mas não é
algo que pode ser desperdiçado. Ainda, apesar de tantos anos no ramo, me
surpreendo com a burrice dos meus clientes. Talvez eles devessem olhar no
dicionário o significado de “eternidade” antes de entrar em um trato-feito
envolvendo as próprias almas.
Entretanto,
a parte da Arte que me enche de prazer é aquela envolvendo ser Agricultor. Eu
não crio o caos com minhas próprias mãos. Minha construção é desconstruir.
Descontruir vidas, descontruir felicidade. Inferno, Céu e pecado são conceitos
muitos abstratos e distantes para as mentes humanas. Mas o sofrimento é real. É
físico, mas também psicológico. Corpo e mente são meu roçado.
Nesse
contexto, considero-me Agricultor, pois plantar a semente da discórdia, da
confusão e do sofrimento é o que eu preciso para consumar a Arte em todas as
suas vertentes. Ver o circo pegar fogo é minha maior satisfação. Por conta
disso, minha agricultura tem se mostrado muito próspera.
Se Deus
está no coração de cada um, eu estou na mente. A humanidade tende a pensar em
mim como o grande torturador. Carniceiro mor até. Acho isso imensa
deselegância.
Minha
Arte consiste em sussurrar aos ouvidos do menino que mais uma dose não vai
fazer mal. Questionar a mulher o motivo de sua amiga ter um carro tão caro e
ela não. Minha Arte consiste em confidenciar para o homem que a religião dele
tem o dever moral de purificar o mundo e suas imundices. Meus caros, minha Arte
consiste em perguntar para o namorado: “Sua namorada não te responde há 50
minutos... estranho, não é?”. Minha Arte, meus queridos, é de fora para dentro.
A
desculpa mais esfarrapada é atribuir os males do mundo ao Diabo. Pobre de mim.
Eu não coloco a arma na mão de ninguém. Eu não preparo a seringa. Eu não conto
para o seu chefe que Carolina falou mal dele. Eu não acendo as tochas e
desembainho as espadas para livrar o mundo por Maomé – ou de Maomé. Não. Eu não
espanco homossexuais ou os amaldiçoo por serem criaturas desprezíveis –
lembre-se, sequer tenho sexo! Eu não coloco negros em navios nem olho seus
dentes. Quem faz tudo isso, meus queridos humanos, são vocês.
O
livre-arbítrio é uma das coisas mais lindas da Criação. Meu Pai acertou em
cheio. E é o livre-arbítrio a principal ferramenta que utilizo para fazer Arte.
Eu não faço imposições. Faço perguntas. “Seu chefe prefere o trabalho de
Carolina ao seu? Será que ele pensaria assim se soubesse o que ela falou semana
passada?”. “Gabriela merece viver após trair o amor que você lhe deu?”. “Não
existem tantas pessoas que se drogam só por curtição e depois param?”. A resposta
para essas perguntas são vocês que dão.
Tudo o que eu quero é
o caos. Provocar, plantar a semente. Meu prazer é ver a semente brotar e se
transformar em uma árvore de tronco sólido e intransponível. Ver o
livre-arbítrio acabar com a liberdade. Por isso, lembre-se: o Diabo não está ao
lado. O Diabo está dentro de sua mente. Sabe aquela voz estranha que causa angústia
e te faz querer chorar? Sou eu perguntando. As perguntas não têm fim. Mas que
fim você quer ter?