Faça suas malas, saque sua
passagem e se prepare para embarcar. Não se preocupe, a viagem será tranquila.
Muito tranquila. Irritantemente tranquila. Você conhecerá o lado mais
irrelevante da mente humana. Aquela zona entre a racionalidade e a paixão.
Entre o cômico e o bizarro. Entre a mentira e a ignorância. Acomode-se, meu
caro, zarparemos em instantes. Não se esqueça do colete salva-vidas, seu
cérebro agradecerá. Mas deixemos de delongas, sem mais intervalos
comerciais. Aproxime-se e embarque no magnífico, no extraordinário, no
abominável e odiado: Transatlântico da Mediocridade.
Todos os domingos – dia da
semana de popularidade questionável – nos deparamos, em algum momento do dia,
com aquela situação em que tudo que poderíamos fazer desaparece. Sejam os
importantes compromissos do trabalho, sejam os prazerosos passatempos.
De repente, você é a
pessoa mais livre do mundo - os operadores de telemarketing morreriam de
inveja. E aí você começa a vagar, como um zumbi que comeu todos os cérebros de
uma ilha. Todos exceto o próprio. É aí que você tem a visão. Lá longe, no
horizonte, mas se aproximando, o agregado do submundo da cultura surge.
Navegando pelas águas calmas e sem ventos, o temível Transatlântico da
Mediocridade dá o ar de sua desgraça. Você não tem escolha e embarca.
Sem sair do seu sofá, você
começa a imergir no vasto conteúdo pouco aderível do transatlântico. Em um
contexto onde o tempo é totalmente desconsiderável, você anda em círculos em um
arquipélago de igrejas – com o número da conta na tela -, produtos extremamente
necessários, e programas de duração infinita. Entre as ilhas, uma ou outra
notícia seríssima e um jogo de futebol.
A bordo do show de
horrores navegante, você avista a primeira parada do transatlântico, a Ilha do
Missionário. O barco atraca, você desembarca e tudo começa com uma pequena
contribuição financeira para entrar no local. Tudo bem, você paga para ver. Um
grande templo ocupa boa parte da área.
É grandioso e luxuoso. Um
verdadeiro palácio celestial. Lá dentro, milhares de pessoas se exaltam regidas
por um astuto pastor. Ele esbraveja e se movimenta de maneira elétrica. O som é
potente, a voz do pastor também. Ele começa a descrever milagres, depois começa
a distribuir milagres. Pessoas voltam a andar, outras a enxergar. Tudo está
acontecendo. Na verdade é tudo meio que um milagre, principalmente você parar
ali, mas o difícil agora é sair.
O pastor cessa um pouco a
enxurrada milagrosa e começa a falar da importância de selecionar conteúdo
adequado, sem interferência do mundo (irônico!). Logo depois, apresenta a
milagrosa TV à cabo abençoada. Um fiel telespectador relata sua mudança de
vida. Ele bebia, fumava, batia na mulher. Depois da TV, tudo mudou. Os filmes
devem ser realmente muito bons.
O pastor continua sua
pregação. Você não sabe por que, mas ainda está dentro do templo, fixado nas
palavras do pastor. Leitura do salmo 126, contribuição de R$ 126,00. Relógio
incessante da oração, um dinheirinho para a bateria. E assim vai. Você está
quase zerado, o pastor arremata com mais um ou dois milagres e então você ouve
o apito e acorda. Hora de partir. O transatlântico continua a navegar. Você
está muito feliz, quem tem tanto dinheiro para igrejas? Então você avista uma
ilha, é a Ilha Polishop. Sua felicidade termina, seu dinheiro também.
A ilha é bastante
peculiar, a começar pelas suas cores. É uma coisa estranha, todo lugar da ilha
é composto por uma parte colorida e outra parte em preto e branco.
Você começa a caminhar. De
cara você vê duas mulheres varrendo o chão. Uma, em preto e branco, parece
sofrer enquanto varre com uma vassoura comum. Ela faz cara de dor, enxuga o
suor da testa e parece irritada. Suas roupas são velhas e o chão, por mais que
ela varra, nunca fica limpo.
Ao seu lado – num cenário
colorido -, a outra mulher parece ter alcançado o nirvana. Trajando um belo
vestido floral, com cabelos soltos ao vento e o sol destacando o brilho do seu
rosto, ela varre. Enquanto varre, rodopia. Mal consegue conter o sorriso no
rosto. “Por que não comecei a varrer antes?” – pensava. O chão já estava mais
do que limpo, mas o que importava? Ela e sua vassoura – que não era muito
diferente da sem-cores, salvo por um ou outro botão – formavam o par perfeito.
Você continua andando,
seus olhos já irritados com aquele contraste cor/sem-cor. O cenário é sempre o
mesmo. Dois homens lavando seus respectivos carros, um em preto e branco,
cansado, triste e sujo, lutando enlouquecidamente com uma maneira murcha e de
jato fraco. Ele tenta tirar a sujeira do seu velho carro, mas parece que a
tarefa é impossível.
O outro é o mais feliz dos
homens. Jatos potentes da mais cristalina das águas jorram implacáveis da sua
super-mangueira-flexível-de-longo-alcance-a-prova-de-balas sobre o seu carro
zero, desmaterializando numa explosão de higiene a sujeira que ali havia.
E são vassouras,
mangueiras, faqueiros e panelas. Dois mundos em um só: o inferno preto e branco
e o paraíso colorido. O transatlântico apita, hora de partir de novo, o destino
é a Ilha do Auditório.
A essa altura da viagem no
Transatlântico da Mediocridade, você já está num considerável nível de tédio. O
balançar preguiçoso a bordo só aumenta sua irritação. Mas ainda há espaço para
mais pólvora antes da explosão. A próxima parada é a Ilha do Auditório, e mesmo
antes de desembarcar, você já começa a ouvir o barulho dos aplausos. “Não vai
dar certo”, você pensa, mas desembarca.
Ao pisar na ilha, você
observa o ambiente. É um lugar pequeno, mas que parece bem maior visto de
longe. Tudo é cercado por assentos, a ilha é realmente um auditório. Os lugares
estão preenchidos completamente, a maioria deles por mulheres. Algumas pessoas
de preto parecem organizar as coisas por ali.
Você fica confuso, mas dá
o primeiro passo. Imediatamente uma música toca repentinamente. O público
acompanha o ritmo nas palmas, dançarinas começam a fazer alguma espécie de
dança tribal antiga, que aparenta não ter o mínimo sentido. É então que um
homem irreverente e sorridente chega. Ele é confiante e parece ser amado pelo
público. O pessoal de preto rege a situação.
Você não entende mais
nada. Só pode ser um evento especial. O homem então vem até você. “Olha só quem
tá aqui hoje! E aí, bicho!”. Aplausos. Você olha desconfiado para o homem e
responde um tímido “oi”. Aplausos. De repente você é o centro das atenções. Um
vídeo mostrando você no trabalho, em casa e no shopping passa. Aplausos. “Que
história, bicho! Conta aí agora, o que mais você faz?”, pergunta o homem. Você
ameaça uma resposta, mas é interrompido por mais uma onda de aplausos. Como
gosta de aplaudir, esse pessoal. É aí que o homem começa a chorar. Ele diz que
sua história é emocionante e pede uma salva de palmas. Você tenta sair dali,
mas o homem não deixa.
O foco logo muda. O homem
logo se esquece da sua emocionante história e chama ao palco cinco mulheres. As
mulheres vão entrando uma a uma no palco ao som de uma música do momento. As
dançarinas acompanham através de uma nova coreografia. Você tem a sensação de
ser a mesma coreografia do início, mas o seu cérebro já está bastante
danificado para distinguir (eu avisei sobre o salva-vidas!). Aplausos.
O homem, então, vai apresentando
as mulheres. Todas têm nomes de gosto duvidoso, cara de ferocidade carente e
querem ser sua namorada. Você nunca viu nenhuma delas na vida. Enquanto você
decide quem será o amor de sua vida, mais aplausos, danças bizarras e uma
matéria interessantíssima sobre os namoros frustrados de ex-BBB com irmão de MC
não das quantas. Então, entre aplausos e coisas sem sentido você ouve o apito.
O transatlântico vai zarpar, e você também. Aplausos.
De volta a bordo, você
sente estar nos limites dos próprios limites, Alguns passageiros parecem tão
angustiados quanto você, outros parecem ter decidido se entregar e simplesmente
ficam a vagar com os olhos apáticos, vazios a cada parada. Você percebe que
apenas o Capitão parece estar normal. Faz algum sentido, ele apenas guia o
transatlântico. Conhece as Ilhas, mas nunca desfruta do seu conteúdo.
Finalmente o barco volta
para casa. Você não pode dizer que está cansado, afinal, não fez tanta coisa
assim. Mas dormir e passar logo esse domingo é o que você mais deseja. Na
segunda-feira, tudo estará normal, não há com o que se preocupar. Pelo menos não
até o próximo domingo, quando nas mesmas horas, nos mesmos canais, o
Transatlântico da Mediocridade virá te buscar.